quarta-feira, 19 de junho de 2013

Augustina Bessa-Luís

Uma coisa que Kafka faz notar a Elli [nas suas cartas sobre educação] é a diferença entre o equilíbrio familiar de pobres e abastados. O mundo e a vida de trabalho estão presentes na casa do pobre, e a atmosfera tóxica da pressão familiar não se produz. A criança do pobre é uma parte do mundo e como tal reconhecida. Não digo reconhecida como privilegiada, mas como igual na partilha dos sofrimentos e dos prazeres. Kafka dá como exemplo o nascimento de Cristo num presépio aberto onde o mundo é imediatamente presente na figura dos Reis Magos e dos pastores. Enquanto que o quadro familiar fechado do homem afortunado tende para o desequilíbrio do próprio amor. Aí trata-se de corrigir a forma física ou espiritual que não corresponda à forma paterna; e a criança está em desigualdade com as forças que a treinam e educam. (…)
No mais fundo da natureza humana e no mais alto da sua condição, nada é possível comunicar. É por isso que a educação resta uma obra do egoísmo, um vaguear entre silêncios inóspitos.
Todavia, a educação é um mérito. Perguntamo-nos até que ponto não somos uma fonte seca ou onde a água se encontra a uma profundidade inatingível, se é que ela existe, como Kafka dizia. Ele descobre a leitura de certos escritores não como um prazer, mas como um desejo de refúgio contra o peito de alguém. «Ele segura-me como uma criança sobre o seu braço esquerdo» – diz Kafka, depois de ler Strindberg. A amargura de Strindberg, água amarga mas que sacia o coração no entanto desgostoso daquilo que o sacia, produz esse simbolismo da criança sentada no braço esquerdo do seu protector; é uma figuração didáctica, vulgarmente usada na imaginária cristã e mesmo pagã. Apolo segura o pequeno Eros no seu braço esquerdo, tal como Santo António segura o Menino Jesus. Corresponde a uma fusão de espécies que não têm voz e que residem nesse espaço cego dos pensamentos reservados. (p. 45, 46, 47)
Kafkiana, Guimarães, 2012

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