domingo, 14 de fevereiro de 2010

Grito 23

Deixar de amar

É verdade, deixei de te amar. Consegui deixar de te amar. Tanto tempo a lutar comigo! Ainda há dias estava conformada com o facto de viver para sempre com este sobressalto dentro de mim: se te visse, se passasse pelos teus lugares, se vislumbrasse o teu carro, se encontrasse os teus amigos ou familiares, se me aproximasse de algo que estivesse relacionado contigo ou, por vezes, se me limitasse a pensar em ti de forma mais profunda, o meu coração fazia “baque”, isso mesmo, “baque” e começava a bater de forma descompassada, obrigando-me a respirar fundo e devagar durante alguns minutos até recuperar a calma. Ainda há muito pouco tempo confessava às paredes que te amaria para sempre mas nunca o admitiria a ninguém, imagina o romantismo.
E tudo se passou de forma tão estranha! Vi-te sem contar ver-te, num lugar muito improvável onde nunca imaginaria encontrar-te, vestido de uma forma estranha para mim, numa postura ensaiada e igual à das outras pessoas que te rodeavam e eis que de repente te acho parecido com o teu irmão. Sim, com o teu irmão! Logo o teu irmão, que nunca seria capaz de amar. Olhei para ti diversas vezes antes de tu me veres a olhar para ti, à espera de te reconhecer deveras, mas essa sensação não chegou e eu senti “baque”, sim, mas um “baque” por motivos diferentes dos habituais. Um “baque” que assinalava a minha liberdade, o fim da minha doença, da minha tortura, do meu segredo. Senti-me sem chão, sem tecto, sem objecto de amor, senti-me perdida no meu desamor, sem caminho. Mas livre, racional, mulher. Apercebi-me do quanto o amor me faz regredir, me infantiliza, me torna dependente, me anula e um sentimento de tristeza apoderou-se de mim.
Aproximei-me de ti, cumprimentei-te, foste cordial, simpático, bonito, mas já não eras tu ali: nem naquele lugar nem dentro de mim. Olhei-te com simpatia, imagina! Acho que nunca te tinha olhado assim e ficaste espantado. Perguntaste-me se se passava alguma coisa; respondi-te que sim, mas que não havia necessidade de se falar sobre isso naquele momento. Estranhaste-me tanto que cheguei a sentir pena. Quem serias tu sem o meu amor? Tinha-te engrandecido tanto; tinhas crescido tanto apoiado nele; tinhas ido tão longe e agora eu reparava que era quase da tua altura e que as tuas mãos eram pequenas, em suma, tinhas defeitos. Doeu-me tornar-te homem, retirar-te a aura com a qual te coroara e nomeara homem da minha vida. Doeu-me devolver-te um sorriso neutro, sem nostalgia, sem dor, sem saudades.
Despedi-me de ti e resolvi ir embora daquele lugar que era o cemitério do meu amor por ti. O lugar onde me libertara de ti. O lugar onde te abandonava. De repente, senti a tua mão no meu ombro e a palavra “espera” soou nos meus ouvidos sem nenhuma emoção. Voltei-me para ti, compreendi a tua orfandade e não fui capaz de te mentir. Não fui capaz de dizer nada. Estava realmente vazia de ti e, ainda, de mim. Pegaste num cabelo caído na gola do meu casaco, enrolaste-o nos dedos e compreendi que tentavas prender-me, chamar-me de volta, ainda que não me amasses já há muito tempo, apenas tinhas boas recordações o que já não é nada mau nos tempos que correm.
Olhei para o relógio e esse foi o último gesto que partilhamos. Deixaste-me ir finalmente. É natural que tenhas ficado a olhar para mim enquanto me afastava porque sabias que o caminho que eu percorria naquele instante era o caminho que me levava definitivamente para longe de ti. Talvez tenhas dito o meu nome baixinho, em jeito de despedida, como poderias ter dito adeus. Talvez me tenhas amado de novo naquele momento. Talvez te tenhas ido embora, apenas. Talvez tenhas acreditado que era tudo tão injusto.

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