quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Grito 4


Em memória

Pensava eu que já tinha ouvido tudo, quando me entra pelo consultório dentro uma ex-paciente que há uns anos tinha acompanhado e que presumia estar bem, dada a ausência de notícias e, sobretudo, o desenrolar e desfecho do processo terapêutico. Ela parecia-me bem. Um sorriso rasgado de orelha a orelha. Elegante, como sempre, e com muito bom aspecto. Cheguei a pensar que, eventualmente, me tivesse procurado para me dar uma boa notícia clássica, do género, vou ser mãe, vou viajar durante um ano, vou voltar a estudar, etc. Sentou-se à minha frente com o seu à-vontade habitual, instalou-se e encarou-me. Havia algo de solene na sua atitude e, de repente, o ar tornou-se pesado. Encarei-a e no fundo dos seus olhos verdes, lindíssimos, vi uma tristeza calma, resignada, infinita. Esperei que falasse, mas não falou. Em vez disso, começou a desapertar os botões da frente de uma blusa branca até ficar em roupa interior. Seguidamente, desapertou o soutien e eis que na beleza do seu tronco existia uma assimetria, das mais perfeitas que alguma vez vira: em vez do seio esquerdo existia uma cicatriz horizontal que, de tão bem feita, poderia ascender ao estatuto de obra de arte. Ela inquiriu-me: tive sorte, não tive? Muitas mulheres ficam com cicatrizes horríveis e perdem o orgulho e a vaidade no seu corpo. Eu continuo a achar-me elegante e sensual. Fiz um gesto afirmativo com a cabeça e continuei à espera que me dissesse o motivo que a trouxera até mim. Enquanto abotoava a blusa, disse-me com a máxima simplicidade possível: quero que me ajude a morrer. E eu compreendi, finalmente. Não: não vinha fazer o luto do seio ou do corpo mutilado, amputado, da sensualidade agredida, dos momentos difíceis da notícia da doença, da invasão da doença, dos tratamentos, das alterações produzidas na sua vida, do medo, da esperança, da morte. Por tudo isso, já ela tinha passado sozinha, provavelmente apoiada por todos os técnicos de saúde necessários nestas situações. Por isso, estava informada. Sabia. Não era pessoa para se deixar enganar. Conhecia a sua situação real. Perguntei-lhe se tinha abandonado os tratamentos. Respondeu-me que não, que não se queria matar porque não queria morrer, mas que sabia que ia morrer e ela não queria morrer desesperada, agarrada à vida, sem dignidade e sem resolver problemas práticos que poderiam atrapalhar a vida dos que cá ficassem. Queria morrer tranquila, sossegada, queria morrer como um mestre, um sábio, com palavras doces para consolar os outros, com sorrisos para lhes alegrar os dias e com o melhor aspecto possível para que se lembrassem sempre dela assim. Por esta altura estava já a tomar morfina para as dores e tinha consciência que a morfina poderia abreviar o seu tempo de vida. Não quero ter dores, disse-me, ou apenas o mínimo possível. Promete-me isso? Prometo-lhe, pensei para dentro. Prometo-lhe morrer consigo porque é assim que quero morrer, com essa força, quase alegria. Prometo-lhe que tudo vai acontecer como deseja. Prometo-lhe que a serenidade da sua morte precoce justificará a sua curta vida e será um ensinamento. Estava derreada perante esta mulher, muito mais nova do que eu, muito mais mulher do que eu, muito mais saudável do que eu, muito mais inteligente do que eu, a pedir-me ajuda, a mim, que da morte só sabia a dos outros. Nada mais. Mas que podia eu prometer, excepto estar ali para a ouvir e aceitar incondicionalmente, sem pena, até ao dia em que ela não conseguisse mais arrastar-se até ao consultório? Perguntou-me se poderia ir vê-la a casa, quando ela não pudesse mais. Disse-lhe que sim, na condição do meu estatuto não mudar nesse contexto, apenas o espaço mudaria. Compreendeu que me recusava a ser a amiga para chorar no meu ombro. Isso não lhe iria faltar. Eu acompanharia as suas emoções, pensamentos, atitudes e decisões até ao fim e, estava decidida a deixá-la fraquejar, embora ela pensasse que não. Ela pensou que eu me asseguraria do cumprimento, da sua parte, de todas as opções tomadas comigo, ainda relativamente autónoma, consciente e com poder decisório. Deixei-a acreditar nisso porque senti que era nisso que ela precisava de acreditar. Não era uma mulher de fé, não tinha muito mais em que acreditar.
Embora tivesse morrido bastante mais cedo que ela própria esperava, teve tempo de resolver tudo o que desejava, de ver quase todos os que suportaram vê-la uma última vez, não sofreu muito com dores e sentia-se que estava calma. Ninguém lhe mentiu ou lhe prometeu o impossível e essa verdade foi-lhe muito tranquilizadora. Nos últimos dias substituiu a palavra morte por viagem e eu perdoei-lhe esta condescendência para consigo própria. Morreu rodeada pelas pessoas que mais amava: o marido, os pais e a irmã adoptiva. No último dia que a vi, toquei-lhe pela primeira vez: apertei-lhe a mão com toda a minha força. E ela compreendeu.

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