sábado, 30 de janeiro de 2010

Grito 16

Vício

Quando me sinto viciada e sei que vou sucumbir cada vez que me afeiçoo mais e mais ao que me vicia, escraviza, desato a correr, a correr, a correr, a correr para lado algum até não ter forças para respirar. A dor do ar nos pulmões distrai-me, afasta-me, leva-me, arrasta-me um pouco para longe. A dor do ar. Por pouco tempo, porém. A dor. E volta a dor do vício, a falta, a falta, a falta de qualquer coisa que não existe em lado algum mas que se materializou para sempre numa substância específica e eu sei onde ela existe, sei que existe e sinto-me tão viciada, tão fraca sem ela, tão forte com ela, tão irreal neste intervalo que vai do prazer ao desprazer. Quero viver nestes extremos: o cúmulo do prazer e o máximo sofrimento. É aqui que vivo, mudando a cada instante, mudando tudo e todos e correrei sempre numa direcção e noutra à procura, à procura do que não há, mas há, onde não está, mas está.
Quando me sinto tão viciada que não sou outra coisa que não o próprio vício, sei que sou o que melhor consigo ser e é nisso que gastarei as minhas últimas forças seja onde for, quando for. Tão viciada serei enquanto o meu corpo m’o permitir, me disser que sim, que é aquilo que quer, que quer cada vez mais, até ser sempre isso o que preciso, a todo o momento, em qualquer instante, até acabar. Por isso correrei, correrei para matar a dor, para encontrar a dor, para dar cabo da dor, correrei em todas as direcções, em qualquer sentido, tocarei todos e tudo até chegar onde a dor se transforma em prazer e eu descanse nesse prazer, descanse tanto que me esqueça de correr, que me esqueça de tudo e entre por esse prazer dentro mudando, mudando, vivendo disso.
Sim, sou uma viciada. Sim, viciar-me-ei mais e mais até mais não ser possível e a dor me empurrar para a corrida que é a procura do vício; que sem ele não sou nada. Sou vício, vício, vício e procura e mudança e escapo-me de dor em dor, de prazer em prazer, da vida que não sei ser nem quero. E vou de joelhos, de rastos, às cegas, às apalpadelas, mas vou correndo, procurando o que sei que quero, que existe lá, naquele lugar onde eu consigo chegar nem que seja pedindo, implorando, cedendo favores, mas indo sempre naquela direcção onde voltarei ao cúmulo da existência, voltarei ao que vale a pena viver, voltarei correndo uma vez e outra até que não haja ar para me doer nos pulmões, nem pernas para correr, joelhos para rastejar, força para alimentar este vício que me ampara e desampara e me dá a conhecer os extremos do que consigo ser. Só assim, quando me sinto viciada, existo. E correrei por dentro se necessário for. Intoxicarei a minha alma até não poder mais e o meu corpo não se mexer. Morrerei sentindo-me viciada.

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